O vinho é um grande perigo, principalmente porque não traz a verdade à tona. Até mesmo o contrário da verdade: revela especialmente nossa história passada e esquecida e não nossa vontade atual; atira caprichosamente à luz as ínfimas ideias com as quais em época mais ou menos recente nos entretivemos e das quais já não lembramos; não faz caso daquilo que esquecemos e lê tudo quanto ainda restou perceptível em nosso coração. E sabemos que não é possível anular nada tão radicalmente, como se faz com uma letra de câmbio malgirada. Toda nossa história é sempre legível, e o vinho grita-a, passando por cima de tudo quanto a vida depois acrescentou a ela.
(Trecho de A Consciência de Zeno, de Ítalo Svevo, escritor italiano nascido em 1861 em Trieste, cidade localizada no extremo nordeste da Itália – à época parte do império austro-húngaro. O livro, publicado em 1923, é considerado um clássico do modernismo italiano e um dos precursores do romance psicológico, inspirado pelas então novas teorias de Sigmund Freud. Svevo foi amigo de James Joyce, que morou em Trieste, e serviu de modelo para Leopold Bloom, protagonista de Ulysses de Joyce, livro publicado em 1922.)