O direito à embriaguez

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O filósofo espanhol Javier Esteban, em entrevista ao jornal La Vanguardia, defendeu o direito de ficar embriagado, no sentido mais lato da palavra. Tá no Uol, para assinantes. Mas como quem tem amigos não morre pagão, me mandaram a íntegra dela, que eu reproduzo abaixo.

Filósofo defende o direito de ficar bêbado
“A embriaguez é um direito humano fundamental”, diz Javier Esteban

Víctor-M. Amela

Tenho 42 anos. Nasci e vivo em Madri. Licenciado em Filosofia e Direito, dirijo a revista universitária “Geração XXI”. Sou casado e tenho duas filhas, Alma (10) e Sol (8). Sou um excêntrico de centro. Sou sufi: caminho para onde caminha o amor. O poder combate a embriaguez.

A entrevista:

LV – O que é a embriaguez?
Esteban –
Uma expansão da consciência que descortina os véus que ocultam a realidade.

LV – Desde quando ela existe?
Esteban –
Desde sempre. Até os animais se drogam com substâncias naturais, com frutos fermentados… Formigas, cabras, pássaros, macacos… Todos se extasiam e brincam!

LV – Então nós somos como os animais?
Esteban –
Não, eles agem por um determinismo instintivo, mas nós temos liberdade! Liberdade para a embriaguez. Liberdade para experimentar com a nossa consciência.

LV – Liberdade para nos drogarmos?
Esteban –
É o uso dessa liberdade que nos torna humanos! O direito à embriaguez, portanto, é um direito humano fundamental.

“Que ninguém venha me dizer quantos copos de vinho eu posso beber”, disse Aznar. Ele tem razão. Mas com certeza a droga favorita dele é o poder, como a de Zapatero…

LV – Nem Zapatero nem Rajoy nunca fumaram nem um baseado, conforme declararam.

Esteban – Por uma questão de geração, custa-me crer que Zapatero nunca tenha experimentado um baseado. É como se o pai dele nunca tivesse provado um copo de vinho!

LV – Quem é que coíbe o direito humano à embriaguez, em sua opinião?

Esteban – A Igreja católica e o Estado (igreja laica), que querem fiscalizar a nossa consciência.

LV – Castigando os motoristas bêbados?
Esteban –
Não, eu não me oponho a sancionar as condutas que são perigosas para terceiros. Mas critico o fato de que estão boicotando o autocontrole que temos de nossa consciência.

LV – Desde quando isso acontece?
Esteban – Começou com a destruição do templo grego de Eleusis, no século 4 d.C.

LV – Agora você foi longe!
Esteban –
Desde o ano de 1.500 a.C., no contexto dos mistérios eleusinos, acontecia um ritual de embriaguez que cada grego vivia uma vez na vida, e isso lhes abria as portas da consciência.

LV – Em que consistiam esses mistérios?
Esteban –
Eram rituais que aconteciam à noite. Em comunhão coletiva, eles ingeriam um enteógeno.

LV – O que é um enteógeno?

Esteban – A palavra significa “deus existe dentro de mim”. É uma substância psicoativa capaz de induzir a uma experiência extática de unidade com o cosmos. Uma vivência da divindade.

LV – Que substância era ingerida em Eleusis?
Esteban –
Uma sopa de cereal chamada “kikeon”, que continha cornelho de centeio, um fungo com uma substância psicoativa idêntica ao LSD, o enteógeno mais poderoso conhecido.

LV – O que acontecia então?
Esteban –
Cada um vivia a sua própria experiência de consciência expandida. Símbolos eram mostrados e cenas eram representadas para guiar o indivíduo ao autoconhecimento.

LV – Era uma embriaguez ritualizada?
Esteban –
Sim, fazia parte do sistema, em benefício da livre consciência de cada indivíduo. Isso foi varrido, destruído. Hoje sentimos falta disso, e nossos jovens, ignorantes, acabam causando danos a si mesmos em suas irrefreáveis tentativas de embriaguez.

LV – Quem destruiu esse ritual?
Esteban –
Os bárbaros e os monges cristãos nestorianos, no século 4 d.C. A cultura ocidental ficou sem referência de embriaguez.

LV – Temos o vinho, o álcool…
Esteban –
Não são enteógenos, são muletas úteis para nossas vidas insatisfatórias, escravizadas pelo rendimento econômico. E, em vez de expandir a consciência, a deixam turva.

LV – Um pouco de álcool pode cair muito bem.
Esteban –
A verdade é que o veneno está na dose, como diziam os gregos.

LV – Que personagens ilustres sabiam disso?
Esteban –
Toda a obra de Platão é uma crônica de embriaguez! Aqueles filósofos, assim como os xamãs, chegavam ao êxtase, assim também como os druidas e depois as bruxas, ou até mesmo os místicos, ébrios sem substâncias, que tanto inquietaram a Igreja. O poder estabelecido sempre combateu essas pessoas!

LV – Por que motivo?
Esteban –
Não há nada mais dissolvente que o livre acesso à própria consciência! Por isso Nixon arremeteu contra os profetas do LSD (Hoffman, Junger, Michaux, Wason, Huxley, Kesey, Leary…), cujas experiências alimentaram o feminismo, a militância ecológica, o pacifismo, os direitos civis… Nixon declarou guerra à consciência: quando começou a guerra contra a droga, começou a grande catástrofe.

LV – Que catástrofe?
Esteban –
Milhões de presos, dezenas de milhares de mortos, narcoditaduras, a terceira maior fonte de renda do mercado negro no mundo, camponeses com fome, multiplicação de politoxicomanias… A proibição da droga foi o maior erro do século 20!

LV – Você propõe eliminar a proibição?

Esteban – Por acaso a proibição evitou que nossas crianças estejam se metendo com drogas aos 13 anos de idade? Não! Pelo contrário: a proibição presenteia as máfias com um poder imenso.

LV – Um político colombiano já me disse isso…
Esteban –
Muitos governantes já reconhecem o fracasso da praga proibicionista.

LV – Você faz a apologia das drogas?
Esteban –
Das drogas não, mas da embriaguez. Qualquer pessoa maior de idade deveria poder consumir qualquer substância (com o limite único da liberdade de terceiros). E, veja só, Silicon Valley nasceu da embriaguez de pessoas como Bill Gates. Este sim admite que fumou alguns baseados!

LV – O que você diria a Zapatero?
Esteban –
Que o direito à embriaguez é um direito inerente à liberdade de consciência, e que a lei deveria protegê-lo.

Tradução: Eloise De Vylder

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3 Responses to O direito à embriaguez

  1. Avatar de João Barreto João Barreto disse:

    sim, uma abordagem tão instigante quanto corajosa. falta-nos “peito” para encarar de frente os erros do século que passou.

  2. Avatar de manoel de brito manoel de brito disse:

    HIC !

  3. Avatar de Izabela Izabela disse:

    Jorge, tô mandando o texto porque desconheço o end. Espero que não se incomode:

    Narciso no país das maravilhas
    CONTARDO CALLIGARIS
    “A maioria dos objetos são drogas: satisfazem um anseio parecido com o do toxicômano.
    Esse é o subtítulo de um estudo publicado recentemente (2006) pela Routledge, “The Self Psychology of Addiction and its Treatment” (a psicologia-do-self da adicção e de seu tratamento). Os autores, Richard Ulman e Harry Paul, são psicanalistas (da psicologia do self, a escola de Heinz Kohut), terapeutas de toxicômanos e eles mesmos drogadictos em remissão.

    O estudo, embora estritamente clínico, propõe uma visão da toxicomania que, ao meu ver, vale como interpretação geral da modernidade. Explico.
    Na laboriosa tentativa de encontrar um lugar no mundo, cada um de nós se alimenta de duas fontes: 1) as aspirações, as normas e os brasões transmitidos por nossos ascendentes, coisas que podem nos dar a sensação de que temos uma missão na vida; 2) o amor, mais ou menos incondicional, que nos acolhe e agasalha nos primórdios de nossa existência permitindo, aliás, que ela vingue.
    Em suma: legados paternos e cuidados maternos (é óbvio que qualquer um pode fazer função de pai ou de mãe).

    Ora, na modernidade, bebemos sobretudo na segunda fonte. Por isso, somos todos narcisos, ou seja, mais preocupados em sermos gostados, amados e admirados pelos outros do que com deveres e princípios.
    Problema: em geral, o modelo do amor graças ao qual seríamos “alguém” (que sempre significa “alguém muito especial”) é o momento em que, pendurados ao peito materno, ou melhor, com a mãe pendurada aos nossos lábios, estaríamos ao centro de um mundo controlado por nós: basta chamar, chorar etc. para que ela apareça e nos faça felizes.

    Logicamente, com esse sonho narcisista encravado no nosso âmago, torna-se difícil lidar com separações, frustrações etc. E, infelizmente, o mundo é um pouco mais cruel do que a mãe-padrão e sempre muito mais cruel do que a mãe mítica e escrava que gostaríamos de ter tido.
    Como aprendemos a encarar perdas, danos e fracassos?
    Quem lia as tiras de Charlie Brown, de Charles Schultz, deve se lembrar do cobertor que Linus carregava sempre consigo: quando as coisas não iam bem, ele agarrava o cobertor e chupava o dedo; era seu jeito de reencontrar, momentaneamente, a felicidade perdida. O cobertor de Linus é um exemplo perfeito do que D. W. Winnicott, um grande psicanalista, chamou de “objetos transicionais”: são objetos inanimados, mas que representam um amor do qual não conseguimos ainda nos separar.

    Eles funcionam como o lápis entre os dentes do fumante que quer parar de fumar: não substitui o cigarro, mas, na luta para deixar o vício, oferece conforto nas crises de abstinência. Ou como a mamadeira da noite quando o desmame acabou há tempos, mas ainda bate, digamos assim, uma “nostalgia amorosa”.
    À força de brincar com cobertores e chupetas, a gente deveria aprender a 1) dispensar cobertores e chupetas,
    2) lidar com a precariedade da presença e do amor dos outros. Mas não é tão simples assim, até porque, nessa tarefa, o mundo não nos ajuda. Narciso vive no país das maravilhas, diante de uma imensa vitrina de objetos que nos prometem o seguinte: ao alcançá-los, ganharemos o amor, a admiração e (por que não) a inveja de todos. E alcançá-los é fácil -basta comprar: chocolate, relógios, charutos ou pacotes de férias.

    Quem precisa de amores incertos com pessoas de verdade ou de objetos “transicionais” que as representem? Os objetos do consumo são a melhor escolha; sobre eles temos um controle absoluto.
    As drogas propriamente ditas oferecem algumas vantagens marginais: são baratas e, graças à crise de abstinência, garantem a ilusão de dominar perfeitamente a alternância de insatisfação e contentamento. Mas, na verdade, para Narciso no país das maravilhas, qualquer objeto de consumo serve.
    Poderia ser o melhor dos mundos, se não fosse por dois detalhes. 1) Se hesito entre um carro e uma amizade ou um amor, é bem provável que minha experiência afetiva seja miserável; 2) se espero a felicidade dos objetos, desaprendo a agir e a desejar. No próximo domingo é a primeira fase da Fuvest, e passei o ano dormindo no cursinho? Não é o caso de me desesperar, vou para o shopping comprar um sapato simplesmente “divino”.

    Agora, falando sério, por que se opor à liberação das drogas? Afinal, a maioria dos objetos em venda livre satisfaz, no fundo, um anseio parecido com o do toxicômano. ”
    ________________________________________
    Nossa subgeração vive apoiada em muletas. É um mundo de gente carente de autoconhecimento, de afetos… vivendo na superfície…

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