Olhe por onde anda!

Final Map Format – 1987 – Ana Amorim.

Visitei hoje uma exposição de obras da artista Ana Amorim na galeria Superfície, nos Jardins (SP), e o trabalho dela me inspirou a escrever o texto abaixo. E também reativar este moribundo blog!

O texto na verdade é sobre uma caminhada que fiz no início de abril com um grupo de arquitetos pelo centro histórico de São Paulo. Seguimos, até onde foi possível, um mapa elaborado pelo coletivo Ceda El Paso, com radiais de 15 minutos de caminhada cada, que tinham como ponto ‘umbilical’ o Obelisco do Piques, na Ladeira da Memória, no centro da cidade, instituído como o nosso verdadeiro ‘marco zero’ da capital paulista.

A caminhada iniciou-se na saída do metrô Higienópolis-Mackenzie na rua da Consolação e seguiu em direção ao norte pelos bairros Higienópolis, Santa Cecília, Vila Buarque, Santa Ifigênia, dando a volta pelo Bom Retiro, Luz, Brás, e retornando ao ponto de partida pelos bairros do Glicério, Liberdade, Bixiga e Cerqueira César.

Ao final, falo um pouco da artista Ana Amorim, que está com sua exposição na galeria dos Jardins até o dia 24 de maio. Lá me informaram que está sendo preparada uma grande retrospectiva sobre sua obra no Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP. Anote na agenda!

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“Olhe por onde anda!” O alerta, que praticamente todo mundo recebeu quando criança, era uma preocupação natural com nossa desatenção infantil em meio a um mundo recheado de perigos e armadilhas. E também cheio de dores, circunstâncias, curiosidades, belezas e vida social que, a depender do olhar, podem nos anestesiar ou estimular. Não preste atenção ao caminho e você não só poderá se machucar, mas também perturbar a caótica ordem natural dos movimentos. Das pessoas que passam, das pessoas que ficam (ou apenas estão), dos carros que vêm e vão, dos caminhos interditados e os novos trajetos obrigatórios – temporários ou não.  “Dá licença, sai, sai!”, ordena a moça apressada, com cara (e voz) de poucas amigas, forçando sua passagem pelo grupo que achou por bem ficar parado na saída de uma movimentada estação de metrô da esquina da rua da Consolação. O grupo se rende ao indivíduo que se fez notar e se movimenta. 

Movimento autoritário? Movimento cidadão? Movimento urbano? Movimento real. 

A vida adulta nos treina o olhar, o caminhar e o parar, mas adequar tais habilidades à dinâmica frenética da vida real não é algo simples. Nosso tempo não é o tempo do outro. Vamos nos encaixando à teia urbana, que não perde tempo em nos fazer lembrar de sua existência. Os caminhos cruzados nos pedem licença – às vezes, de sopetão – a todo momento.

Embora os riscos físicos da desatenção andarilha sejam os mais, digamos, urgentes, há também o ‘risco’ de ignorar as muitas realidades que nos cercam, o que empobrece nossa experiência e reforça estereótipos. O caminhar vai muito além do simples deslocamento do ponto A para o ponto B. É certo que o pragmatismo dos tempos e a intensidade da vida nos fazem querer fazer esse deslocamento da maneira mais agilizada possível. Quanto menos aleatoriedades interferindo no trajeto, mais seguro estamos de fazê-lo conforme o planejado. No entanto, caminhadas urbanas, ainda que planejadas, convidam o aleatório a cruzar nosso caminho. O que vamos encontrar no quarteirão seguinte? Quais caminhos cruzarão os nossos? Como reagir nesses momentos? É para reagir? Devo, posso, quero?

Caminhadas umbilicais - centro de São Paulo. 20250406
Trajeto realizado no dia 6 de abril de 2025 com grupo organizado pelo coletivo Ceda el Paso percorrendo um mapa circular com radiais a partir do Obelisco do Piques, no centro histórico de São Paulo.

O rapaz de corpo sarado que parece dançar ou se exercitar com golpes de uma luta marcial (kung fu fighting imaginário? real?) na manhã de um domingo qualquer no bairro Mercado, às margens do rio Tamanduateí; a moça bonita e arrumada que passa pela inóspita calçada em frente ao Mercado Municipal onde mais a frente um rapaz é assaltado em um ponto de ônibus; os migrantes de países africanos discutindo em suas línguas natais assuntos cotidianos, banais ou não, pelas ruas do Glicério; os vendedores ambulantes tentando atrair a atenção de quem pode lhes garantir o almoço do dia na rua 25 de Março; os moradores em situação de rua despossuídos de qualquer moeda de troca, que circulam enlouquecidos e embrutecidos no entorno da Estação da Luz, forçando uma animosidade selvagem que quase nunca têm como bancar – mas é a que sobra – ou ficam prostrados, arriados na esquina, encostados a postes, paredes, bancas, de olhar perdido (talvez a última coisa a se perder ali, além da vida…) suplicando silenciosamente por alguma visibilidade; passantes seguindo seu caminho, impotentes ou indiferentes; autoridades policiais varrendo seres humanos de um lado ao outro como se fossem entulhos pelas ruas e vielas do Bom Retiro e Campos Elíseos; boêmios tardios celebrando sua resistência nos pés-sujos dos becos da Santa Ifigênia, lavando as agruras do que virá com bebida barata e alegria fugaz; famílias fazendo suas compras de domingo nos poucos mercados e lojas abertos em meio ao caos urbano da Liberdade. A vida, de todos, continua; até não mais.

Somos capazes de passar pelos mesmos pontos dezenas, centenas de vezes sem atentar aos aspectos mutáveis da cidade, do bairro, da rua, das pessoas, dos caminhos… Dos bairros que são cortados e modificados por imensas avenidas, conjuntos de sobrados que têm memórias de fluxos migratórios esquecidos, mesclados entre si, gentrificados ou abandonados, resistindo como podem aos novos prédios com seus novos fluxos, novas memórias. O restaurante chinês no coração do bairro da Liberdade, famoso pela imigração japonesa (pelo menos para este escriba, carioca da gema perdido há décadas em São Paulo), com funcionários nordestinos, seguranças afro-caribenhos e clientes brancos dos bairros nobres.

João do Rio, jornalista e cronista carioca do início do século 20, defendia o “perambular com inteligência”, uma forma de refletir sobre nossa existência e interagir com o mundo real. Deixar-se perder por faixas de tempo e espaço, salpicadas de histórias, memórias e gente que pede passagem, exige atenção, devolve a curiosidade dos olhares estrangeiros com indiferença ou simpatia, prenunciando porquês e senões que, aos olhos de quem passa, nem sempre são decodificados – não carece, cada um constrói o real daquele instante conforme sua própria circunstância. As injustiças que são, os amores que não mais, o possível que ressurge.

Seguir em frente ou voltar atrás? Manter o trajeto inicial ou alterá-lo? O mapa vai se desenhando conforme caminha-se, mas dentro de um trajeto prévio (de A a B). A passagem se faz por caminhos antes inimagináveis – ou nunca antes levados em consideração. Nos hospedamos temporariamente pela cidade para concluir o trajeto. Elas nos convida a ir por ali ou por lá, a depender da nossa disposição, do risco calculado, do objetivo a ser alcançado. Os viadutos, passarelas e ruas que nos abrem caminhos possíveis. Hospitaleiros? O estrangeiro que passa, sinalizando postura amigável e estar apenas de passagem, pede segurança, mas oferece hospitalidade (ou mesmo segurança) aos que são locais do território “invadido”? Depende de quem vem, depende para onde quer ir, depende do que veio fazer.

Ao caminhar, sozinho ou em grupo, estamos sujeitos a se hospedar na vida e na história dos outros. É uma troca mútua de confiança. E se somos todos uma ilha neste mundo, é necessário construir pontes para conectar-se, amar-se, conhecer-se, entender-se. Hospedamos estranhos e velhos amigos, novos e antigos amores, lugares e situações, e os carregamos pelo caminho. E nas paradas, quando estamos cansados, velhos de guerra, nos sentamos ao redor da fogueira da vida para fazer as contas e nos alimentar do saldo que fica dos encontros fortuitos que o caminhar e o parar nos trouxeram. Nós hospedamos as memórias e esperamos que elas nos confortem e nos conectem à hospitalidade possível. Olhe por onde anda, o caminho renova!

Ana Amorim desenha rotas de tempo e espaço geolocalizando sua existência.

Ana Amorim

A imagem que abre esta publicação e é uma de suas inspirações é de uma das obras da artista Ana Amorim, paulistana nascida em 1956 que vive e trabalha entre São Paulo e Madri. Visitei em abril de 2025 sua exposição 27032025-6.720-280-68 / 24052025-5.328-222-68 realizada na galeria Superfície, em São Paulo, que reúne obras realizadas entre 2018 e 2024 – com exceção de uma, seis livros e um relógio, que simboliza seus trabalhos iniciais de 1987/1988.

As obras de Ana Amorim expostas na galeria dos Jardins são roteiros diários retratados em mapas mentais dispostos em diversos meios e formatos, geolocalizados de maneira formal e também afetiva.

Formada em matemática pela PUC-SP e em belas artes e educação artística pela FAAP-SP, com pós-graduações em artes (pintura, história da arte, estética e teoria da arte) em universidades dos Estados Unidos (Ohio University), Inglaterra (Middlesex University em Londres) e Nova Zelândia (Massey University em Palmerston e em Wellington). Dois textos estruturam sua obra: Decisões Conceituais, que definiu os termos de uma década de prática artística diária entre 1988 e 1997, e O Contrato de Arte, que moldou as condições sob as quais sua arte pode circular de 2001 a 2017.

Em julho de 2025 está prevista uma retrospectiva da obra de Ana Amorim no Museu de Arte Contemporânea (MAC) de São Paulo. Vou conferir, claro!

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